Notícias da São João Batista - Boqueirão do Leão -voltar-
ADEUS, PADRE PAULO!
Créditos foto: Divulgação Full Width Post Format
Todos nós passamos por momentos muito difíceis em nossa vida, principalmente quando a morte nos visita de forma próxima, por vezes, repentina ou até trágica. Nestas ocasiões nossos sentimentos são profundamente afetados e somos surpreendidos por experiências jamais vividas e sequer imaginadas. Percebemos, então, que muitas realidades que valorizamos tanto no dia-a-dia parecem insignificantes e tocamos diretamente no âmago da vida e de seus mistérios mais profundos e as lágrimas não pedem licença para rolar pela face. São momentos em que os mistérios da vida e da morte se entrelaçam; o mundo da vida parece estagnar-se e envolver-se em noite escura, convidando a parar e refletir, mergulhando num misto de silêncio e necessidade urgente de diálogo, sempre na busca de luzes e de novas forças, a partir da solidariedade fraterna e, sobretudo, do olhar para o Alto, para o Infinito, também aparentemente silencioso e enigmático, mas necessário para renovar a fé, talvez questionada em meio ao surgimento de inúmeros por quês, mas como único sinal luminoso no fundo do misterioso túnel da vida humana.
Sim, a morte humana sempre é difícil, porque em nós existe a semente da imortalidade: fomos criados à imagem e semelhança de um Deus eterno e nós também desejamos viver sempre. Quando a morte é prematura, o ciclo da vida parece estar ainda mais incompleto e frustrado, ao menos sob o aspecto humano ou biológico. Contudo, para nós cristãos, mesmo em meio à silenciosa e amarga dor da separação de um ente querido, junto ao relativo conforto da solidariedade humana, surge a luz salvadora da fé e da esperança, como afirma São Paulo aos romanos: “Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos; se morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto, vivos ou mortos, pertencemos ao Senhor... e cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus” (Rm 14, 7-9;10c-12). Mais consoladora ainda é a Palavra do próprio Cristo no evangelho: “Esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6, 39). 
É com este consolo da fé que nós entregamos a vida de Pe Paulo Mayer, integrante de nossa família presbiteral, nas mãos da misericórdia de Deus. Ele há de acolher este nosso querido irmão, com quem nós, neste mundo, não mais podemos conviver, mas podemos colher abundantes frutos da semente lançada por ele no chão diocesano e das comunidades. A nós cabe rezar por ele e cuidar de nossa vida e da vida dos outros que necessitam de nós. Os mistérios de seu sofrimento, que o levaram até a sua morte, ultrapassam a compreensão de nosso limitado alcance humano. Por isso, nós o entregamos nas misericordiosas mãos do Senhor da Vida, aquele que tudo conhece e tudo pode.
Foi dentro desse espírito e dessa confiança que, já na encomendação de Pe Paulo, apontamos três aspectos para reflexão e que continuam válidos: “1º) É hora de profundo silêncio, mas dentro dele ecoe a palavra ‘Misericórdia’: Prece a Deus para colocar seu coração junto à nossa miséria humana; 2º) Não julgar neste momento da fragilidade humana e olhar para todo bem que Pe Paulo realizou em sua vida, como cristão e presbítero, junto ao Povo de Deus, com zelo de profeta, sacerdote e pastor; 3º) É momento de oração, colocando nas mãos misericordiosas de Deus a vida de Pe Paulo”.
Portanto, mesmo na fragilidade e no limite humano da doença, certamente mais psíquica que biológica, e da consequente e misteriosa morte, Deus continua a ser o Senhor da Vida entre nós. Ele jamais nos abandona. Incorporados a ele, através do batismo, nossa vida recebe caráter de eternidade, independente dos anos vividos neste mundo. O valor da vida não se mede pelo tempo maior ou menor de anos, somados neste mundo, mas pela intensidade ou qualidade de sua ligação com Deus, que é eterno, e pelos laços fraternos, vividos com os irmãos e as irmãs. É assim que desejamos contemplar a despedida de Pe Paulo e as diversas mortes prematuras em nossas famílias e comunidades. A partir da fé, mesmo com a interrupção prematura da vida biológica, não desejada por nós e nem por Deus, mas ocorrida dentro do limite da fragilidade humana, como cristãos, cantamos: “Graças dou por esta vida”, pois sendo ela ligada a Deus, adquire inestimável valor, recebe seu misericordioso e justo destino. Como é bom ser cristão, receber a graça e o conforto da fé e não ser atingido pelo amargo sem-sentido da vida, como se ela fosse um caminhar irreversível para o fim, para o nada e o vazio, para a morte, tornando-se uma espécie de “paixão inútil”, como diria o ateu J. P. Sartre. Não é por nada que rezamos convictos na Profissão de Fé: “Creio na comunhão dos santos; na remissão dos pecados; na ressurreição da carne; na vida eterna”.
Nossas palavras humanas se tornam pobres e impotentes para trazer consolo pleno e duradouro para os familiares, para os irmãos do clero, para os fiéis de nossa diocese e, sobretudo, para o querido povo da Paróquia São João Batista de Boqueirão do Leão/RS. Mesmo assim, diante do limite do sofrimento humano, o importante é estarmos juntos, ao lado de quem mais sofre. Novamente constatamos que a solidariedade é das atitudes mais belas da pessoa humana. Mesmo que não somos capazes de tirar toda aflição dos mais atingidos, nós a repartimos e a aliviamos, qual bálsamo que ameniza a dor de nossas feridas.
Foi com este modo de pensar que, após as intermináveis horas de espera, por causa da distante e demorada necropsia, e as dolorosas cerimônias de encomendação e de sepultamento, me dirigi para a Paróquia São João Batista de Boqueirão do Leão para viver, por vários dias e de forma presencial, como “Irmão-bispo”, junto com o Povo de Deus, a triste e misteriosa partida de Pe Paulo. Ainda no velório, em Santa Cruz, alguém da referida paróquia me dizia, aos prantos: “Bispo, estamos todos como ovelhas sem pastor”. Isso afetou profundamente meu coração de bispo - pastor e responsável primeiro pela paternidade espiritual dessa diocese. E assim decidi iniciar a penitência da quaresma, dirigindo-me para Boqueirão do Leão/RS, a fim de lá celebrar a missa da Quarta-Feira de Cinzas com os fiéis e permanecer no local até o domingo seguinte. Talvez nunca as cinzas da penitência falaram tão fortemente como nesta experiência. Estávamos iniciando uma caminhada de verdadeira penitência, mas também se acendia em nós, aos poucos, nova luz de esperança, pois a Páscoa de Jesus Cristo, que também é nossa, deve ser passagem da morte para a vida. Na missa, a leitura do profeta Joel foi um bálsamo para os corações feridos: “Voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Jl 2, 13); e São Paulo dizia: “Deixai-vos reconciliar com Deus... É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2Cor 5, 20 e 6, 2). Assim a Palavra de Deus se tornou bem atual, muito viva e Jesus, no Evangelho, ainda nos fez o convite para a oração, o jejum e a caridade (cf. Mt 6, 1-6.16-18). Nos dias seguintes desta experiência de “Igreja em saída”, era tão bom iniciar o dia com cuia na mão e rezar na porta do lado leste da casa canônica, esperando o sol nascer no horizonte para ver iluminada a cruz da torre da matriz, como símbolo da luz da fé, em meio ao sofrimento. Durante aqueles dias, pude ouvir muitas pessoas, desde o Sr. Prefeito, as principais lideranças, até as pessoas mais simples. Junto com um lockdown no município, devido à pandemia do coronavírus covid-19, havia uma comoção geral na cidade e paróquia. Era preciso ser irmão na escuta, no consolo, na solidariedade, nas lágrimas e, sobretudo, na fé e na busca de novos caminhos de esperança. Sim, não poderíamos ficar parados, chorando de forma inerte a saudade de quem partiu. Era preciso reerguer-se, aprofundar a fé pela oração, buscar união para carregarmos juntos a pesada cruz dos acontecimentos, seja da morte de Pe Paulo, quanto da pandemia que se alastrava rapidamente. Por causa do distanciamento necessário, alguns programas litúrgicos foram cancelados e a missa de sétimo dia só teve a presença do Sr Prefeito, representando todo município, e da equipe de liturgia, em nome da Paróquia, e de alguns familiares de Pe Paulo. O povo acompanhou a celebração em suas casas, através da Rádio Arauto, veículo de comunicação muito importante também em outros momentos.
Como bispo da Diocese de Santa Cruz do Sul, posso dizer que foi uma experiência dolorosa, mas repleta de fé e amor fraterno, junto com os fiéis, tão acolhedores, prestativos, solidários e dispostos a recomeçar. Aos poucos, tudo tornou-se mais leve e a cruz do sofrimento foi sendo iluminada com maior claridade, indicando para sinais de nova vida, qual esperança pascal concretizada. 
Obrigado, querido povo de Boqueirão do Leão! Nossa vida deve continuar na certeza de que o Senhor da Vida caminha conosco e nos fortalece. A todos que ajudaram através dos diversos serviços ou foram solidários e se uniram pela oração, neste momento difícil para toda diocese, externamos nossa gratidão. À Província dos Franciscanos, desde já, somos profundamente gratos por entenderem nossa situação e estenderem a mão fraterna e samaritana para assistência na Paroquia São João Batista de Boqueirão do Leão/RS, durante o ano de 2021. Frei César dos Santos Machado (Pároco) e Frei Leandro Joel Defendi (Vigário paroquial), sejam muito bem-vindos entre nós!
Pe Paulo Mayer, tuas últimas palavras escritas para nós foram: “Obrigado por tudo”! Hoje repetimos a mesma expressão para você. O Senhor da vida e da misericórdia te conceda a Paz eterna! Adeus, ou até Deus, caro Irmão no profetismo, no sacerdócio e no cuidado de pastor! Teu grito solidário pelos que sofrem, escrito num bilhete de despedida, continua ecoando pelos frondosos e resistentes pinhais das colinas e morros de Boqueirão do Leão e, sobretudo, não deixa de ecoar nos corações dos fiéis que entendem a mensagem central do Evangelho, que tanto te deixava angustiado: o amor a Deus e ao próximo. “Não aguento mais ver gente sofrendo e não poder fazer nada!”. Foi o teu apelo final, tua última homilia, para vivermos a caridade fraterna, especialmente junto aos que mais sofrem. Façamos a nossa parte!
Autor: Dom Aloísio Alberto Dilli - Bispo de Santa Cruz do Sul.