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Os evangelhos e a primeira carta de Paulo aos Coríntios, falam da Ceia da despedida de Jesus, seu memorial-testamento, como entrega de si mesmo à humanidade em forma de pão e vinho. As narrativas recolhem os símbolos da Páscoa judaica, com elementos de uma comemoração dos primeiros frutos depois do inverno palestino. Trata-se, naquele contexto, de uma festa de primavera, com pães sem fermento, cordeiro de um ano, vinho e lembrança da libertação do Egito. É memória de uma história de um povo escravizado, entrando em liberdade numa nova terra; é uma história simbolizada com os frutos da terra e do trabalho humano; é uma refeição para a nova terra e o novo ano, que se torna promessa de um futuro novo, de uma aliança definitiva, em que o Mistério Divino, pela cruz e ressurreição se faz Páscoa nova e eterna, para gente nova e comunial, num reino “de justiça paz e alegria” (cf. Rm 14,17).
No evangelho de João o tema da Eucaristia talvez esteja insinuado nas bodas de Caná, enquanto festa, e na figura do vinho (cf. Jo 2). Claramente o tema é desenvolvido na multiplicação dos pães e no discurso do pão da vida (cf. João 6). Ao contrário dos sinóticos, João não tem um relato com as palavras e gestos, mas descreve o lava-pés como o momento mais dramático e de maior densidade (cf. Jo 13). Lavar os pés é o gesto da hospitalidade e da diaconia, do serviço. Só que aqui é o Mestre, o Filho de Deus, quem se abaixa e serve, antes mesmo da ceia. Em certo sentido, esse lavar os pés mostra uma condição para entrar na ceia, revela uma dinâmica inerente ao acesso para a mesa, já que requer uma outra forma de entender o divino. O Filho de Deus se faz último e só quem o reconhece nessa condição pode reconhecê-lo autenticamente na ceia – “se eu não te lavar os pés, não terás parte comigo” (Jo 13,8). A imagem que Pedro tem de Jesus é a de uma autoridade que domina, eventualmente invocando um Deus dominador. Agora deverá despedir-se dessa maneira de pensar e aceitar um Mestre diferente. Ele, Pedro, terá que mudar. O mesmo vale para os demais discípulos: “Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor vos lavei os pés, também deveis lavar os pés uns aos outros” (Jo 13,14).
A Ceia de despedida, antecipa o significado da cruz. O Mestre e Senhor que lava os pés dos discípulos é o mesmo que será sacrificado no lugar do cordeiro pascal na cruz. Será crucificado pelos poderes deste mundo, os donos de uma religião de estado e dos usurpadores de uma tradição religiosa libertadora da escravidão. A religião de estado, a religião do Império Romano, cujo imperador ostentava o título de “sumo pontífice” e protegia o culto do templo de Jerusalém. Coligados entre si, as autoridades do templo e os representantes de Roma, garantiam o silêncio e a opressão do Mestre e Senhor e da sua forma de ser e se relacionar com as pessoas e com o Mistério Divino. Judas é a expressão desse velho modo de compreender o divino: para o Iscariotes, o dinheiro da traição, da “delação”, é a oferta aos ídolos desse mundo da violência. O traidor se vendeu a um projeto e a um discurso de “paz” violento imposto pela força das armas e da repressão. Daí que a paz de Jesus “não é como o mundo dá” (cf. Jo 14,27). A promessa de Jesus, recordada em cada celebração eucarística, é a promessa da paz verdadeira, que é diferente. Está radicada na vinculação do amor, do perdão, do serviço e da doação.
A Eucaristia é a celebração dessa paz que leva a uma vida comunial, ou seja, de comunhão com todas as pessoas e com o Pai por Jesus Cristo no Espírito Santo. É a paz que vem do servir, do “lavar os pés uns dos outros”, e não do domínio, da violência ou da força. Do serviço chega-se à ação de graças – Eucaristia – em que o divino e o humano se “con-graçam” e se “con-gregam” como fonte de vida e plenitude na “nova e eterna aliança [...] por todos”.