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Entrevista com Cesar Goes: "Somos uma comunidade?"

Créditos foto: Reprodução / Internet

“Uma vida que deixa saudades”
A 13ª Assembleia Diocesana de Pastoral, realizada em novembro 2021, definiu como umas das prioridades, a constituição de Comunidades Eclesiais Missionárias, Samaritanas e Sinodais. O que isto significa? Como se caracterizam? Ao longo deste ano, especialmente pelas entrevistas na Revista Integração, vamos aprofundar aspectos desta prioridade.
E neste mês de abril, nossa preocupação é clarear um pouco mais a definição e sentido de Comunidade. E contamos com a colaboração do sociólogo Cesar Hamilton Brito Goes, professor do Departamento de Ciências, Humanidades e Educação da UNISC. Ele atua em assessorias pastorais acompanhando os trabalhos sociais da Diocese de Santa Cruz do Sul. Cesar também foi membro da Pastoral Universitária e do Movimento de Cristãos Universitários. Acompanha atividades em economia solidária, formação de professores e educação popular.
Pe. Zé Renato Back

1. O que é comunidade?
Um grupo de pessoas que, tendo relações (de ser ou fazer) em comum, se identificam enquanto tal. Não há, como a sociologia advogou por muito tempo, uma dimensão polarizada (macro/micro, local/geral) para definir que o conceito de comunidade seria, em termos de dimensões, o oposto de sociedade. Hoje, comunidade significa reconhecimento e ação social, vida concreta onde os indivíduos se reconheçam pertencentes a um grupo. Deve haver uma ação comum, que está na base desse reconhecimento. Dizer-se católico não é suficiente para ser pertencente a uma comunidade católica. A pessoa pode até pertencer à Igreja Católica, como uma instituição, sentir-se ligado a ela, mas se não viver com outros católicos uma forma de vida que seja compartilhada, não terá uma dimensão de vida comunitária.   

2.  Não te parece que a palavra “comunidade” perdeu muito de sua força com o seu generalizado uso?
Não. O que ocorreu é que ela tomou múltiplos significados, alguns que a reforçam e outros que a dilui, mas quem se sente pertencente a uma comunidade fará experiências singulares de como ver e viver no mundo. A sensação de uma diluição vem por conta das diversas formas de discursos, que, por políticos que são, o utilizam segundo sua conveniência. Um exemplo claro são as diferentes intenções quando o termo “comunidade” substitui o termo “favela” no meio urbano. Quando um morador de uma comunidade o expressa no lugar de se referir ao seu espaço como favela, ele está carregado de um sentido diferente de um outro agente que pode adotar este termo para evitar que a referência venha associada aos problemas que a palavra “favela” traz consigo, até porque este pode ser também acusatório ou intimidatório.
Assim, temos que prestar atenção ao contexto da emissão do termo “comunidade”. Eu diria que uma boa associação é vinculá-lo ao termo vida e partilha. Se há vida e partilha, ali há uma comunidade.
Se eu fizer parte de um grupo ativo, sistemático e que tenha coisas em comum, a partir do uso da Internet, por exemplo, sou pertencente a uma comunidade, embora ali a noção de território é muito diferente da referência ou do limite geográfico (uma porção de terra demarcada).  Assim o termo acabou se ampliando e se fortalecendo também. Onde ele for somente um discurso vazio, de criação de uma imagem, então é um termo fraco.

3. Internamente dizemos que muitas de nossas comunidades são sociedades, porque tem como único critério “ser sócio”. Na visão do “professor César”, o que distingue uma “comunidade” de uma “sociedade”?
Faremos esta distinção de outra maneira. No nosso contexto, da Igreja, ser sócio tem um duplo sentido. Primeiro é uma relação voluntária mas juridicamente amparada, no sentido do “dar e receber”. Se pago o dízimo, por exemplo, me sinto
com direitos de pertencimento. O problema aqui não é o dízimo, que historicamente é a maneira de contribuição para que a comunidade religiosa, da qual faço parte, tenha o mínimo de suas necessidades providas. Portanto, neste sentido o dízimo é uma coisa boa e está articulado ao seu sentido histórico. Mas em algumas paróquias católicas ou de outras Igrejas, o dízimo deixou de ser uma expressão da boa vontade e do sentido de esforço do fiel para com sua comunidade e passou a ser uma relação mercantil: para pertencer tem que pagar. Ora, eu posso não ter dinheiro mas contribuir para a vida da comunidade de forma mais decisiva que o rico que, para se sentir bem com sua fortuna e tentar aliviar a culpa, contribui com uma boa soma. O problema não é a intenção do rico, que isso é com ele. Se o seu dinheiro for honesto, é bom para a comunidade. Mas quando isso inviabiliza a contribuição do pobre, provocando a sua exclusão, começamos a nos complicar. Tanto é que na maioria das paróquias, valoriza-se muito mais o ato de contribuir do que a quantia ali somada.
Portanto ser sócio ou pertencente a uma comunidade podem estar fundidos no mesmo espírito solidário ou podem estar hierarquizados e na maioria das vezes, torna-se uma distinção de poder. Aqui há um aspecto bem importante: se falamos em comunidade, que pode ser também uma sociedade, nós fazemos a regra ou a assumimos e ela não é, antes de tudo, uma imposição.

4. O que caracteriza uma comunidade eclesial?
Uma expressão que dá a esta comunidade uma particularidade, a faz singular. O termo eclesial, como compreendemos hoje, tem diversas camadas históricas quando dentro da vida da Igreja. Para alguém que não tem uma comunidade da qual vive e significa a sua fé, o termo se confunde com o espaço da Igreja institucional. Mais ou menos como se eu dissesse que se o assunto é eclesial é porque é de Igreja. Tremendo reducionismo. Se tomarmos a sua origem, vamos ao mundo grego e à ideia de assembleia, de partilha e construção de um consenso ou de uma posição.
Na tradição bíblica, com a devida licença de um não teólogo, o termo ganhou um significado moral e poético. O Livro do Eclesiastes, que compõe o Velho Testamento e que sempre voltamos a ele no período pascal, além de ser um livro poético, dos cânticos, é um livro no qual os poderosos, os reis, revisam suas condutas e suas obrigações para com seu povo, priorizando valores de horizontalidade, pertencimento e compromisso com ele. Longe de mim reconhecer uma sociedade moderna como uma sociedade monárquica, mas aprendemos dali, nas nossas comunidades católicas, quando lemos e fazemos a partilha do texto bíblico, que a vida se constitui de valores, de partilhas, de decisões nem sempre agradáveis para todos mas que, quando toca no sofrimento, este poderá ser amenizado se partilhado como fardo.
Assim, uma comunidade eclesial é uma comunidade que, antes de reconhecer uma autoridade hierárquica, reconhece em todos os seus membros uma autoridade moral, cujos encargos são distribuídos segundo as capacidades e as possibilidades de serviço e todos desfrutam de um horizonte no qual poesia, natureza e alegria dão conta do espírito que os orientam.

5. Na 13ª Assembleia Diocesana de Pastoral tu levantaste uma questão que foi marcante: “Quem são as pessoas que vão chorar no meu enterro?” Será correto dizer que a comunidade ideal é formada por pessoas que choram no enterro de cada um de seus membros?
Vamos começar falando do que seria uma comunidade ideal. Ela, como um lugar genérico, talvez mítico, só exista no nosso imaginário. Na vida concreta, a comunidade ideal é aquela na qual entre alegrias, ganhos e dificuldades, eu me sinta bem, cuidado e amparado e possa constituir laços de reciprocidade. Amparado aqui quer dizer também respeitado nas escolhas que faço, que não tragam prejuízos aos próximos. Por isso a imagem de uma partida na qual sintamos saudades do quão bom foi viver com àquele ou àquela que partiu para junto do Pai. Saudade e bem querer são componentes de nossa constituição como humanidade. Nós cristãos, damos um sentido específico para isso quando vivemos com estas qualidades e as cultivamos como dom e como referência da vida de Cristo.  Isso nos leva a cuidar e a bem querer, inclusive de quem não partilha conosco essas mesmas razões. Uma vida boa é uma vida que deixa saudades. Acho que vivemos assim.

6. Que ações tu indicas para que a Diocese de Santa Cruz do Sul possa transformar as suas tradicionais comunidades em “comunidades eclesiais missionárias, samaritanas e sinodais”?
Privilegiando circuitos de vivências e de grupos para nossos pares. Uma Paróquia é mais que missa, é mais que padre e secretaria. Uma paróquia é um lugar de convivência e de experiência espiritual. A sinodalidade pressupões o encontro e a horizontalidade. Pressupõe também o querer viver em comunidade, confrontar nossas vaidades a partir da escuta das dificuldades e das alegrias dos irmãos e irmãs e compartilhar com os mesmos as nossas.  Fazer escolhas e lutar por elas. Existe aqui uma condição importante pois a sinodalidade confronta a tradição hierárquica da Igreja. Particularmente fiquei feliz que a nossa Diocese nos aponte este caminho, mas confesso que temo quando o espírito sinodal, em movimento, se deparar com as dificuldades de uma Diocese muito tradicional como somos. Mas confio que saberemos escutar e ponderar entre nossas vontades e nossas possibilidades. O Reino na Terra me parece que é assim, uma eterna tentativa de viver aqui o que certamente viveremos após nossa ressurreição.

Autor: Pe. Zé Renato Back e Cesar Goes
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