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Entrevista com Pe. Pergentino Pivatto: "Cuidado e Cultura da Paz"

Créditos foto: Reprodução / Internet

Vivemos um momento histórico no qual o mundo clama por! Não há quem não se sinta ferido com a violência que, de múltiplas formas, extermina a vida. Clama-se por iniciativas pessoais e públicas que possam atender à necessidade vital de mais paz. A vida humana é uma história de conflitividade e resolução de conflitos.
Estamos vivendo o Tempo Pascal. Um tempo em que a liturgia, proposta pela Igreja, nos revela que o Cristo Ressuscitado aparece aos seus, desejando-lhes a Paz (cf. Jo 20, 19ss).
Para ajudar nesta reflexão sobre as possibilidades e caminhos para uma cultura da paz, convidamos Pe. Pergentino Pivatto.
Pergentino possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1969), graduação em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana (1964), mestrado em Filosofia - Université de Paris IV - Sorbonne(1978), mestrado em Teologia - Institut Catholique de Paris (1978), doutorado em Filosofia - Université de Paris IV -Sorbonne - (1980) e doutorado em Teologia - Institut Catholique de Paris (1980). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética, Filosofia Política e Antropologia, e atuação na Graduação e na linha de pesquisa Ética e Filosofia Política do Pós-Graduação em Filosofia. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em fundamentos da educação, ética, alteridade, intersubjetividade, paz, humanização, e atuação na linha de pesquisa Fundamentos, Políticas e Práticas da Educação Brasileira no Pós-Graduação em Educação.
Pe. Zé Renato Back

1. O que é a PAZ?
Paz, tema de muita reflexão e discussão, em diversos campos do conhecimento. Já foram escritos não poucos tratados sobre a complexa e vasta problemática da paz. Por exemplo, o famoso texto de Kant intitulado Pax Perpetua, ou a bela tese de Éric Weil – Logique de la Philosophie, publicada em Paris, pela editora J. Vrin. É bem conhecida a definição dada por S. Agostinho: “Tranquilitas ordinis” (Tranquilidade da ordem). Mas, que ordem? Seria a “Pax Augusta”, proposta pelo imperador romano Augusto, baseada na força das armas e do poder? E como entender a dimensão da tranquilidade? Seria psicológica, seria social, seria econômica, seria religiosa, etc....?
J. Galtung, grande estudioso da paz, entre os vários aspectos que compõem sua temática, não oblitera a dimensão do desenvolvimento pluriversal. Paulo VI inclui e acentua esta dimensão no famoso texto Populorum Progessio.    
Paz é uma realidade profundamente desejada, onipresente na caminhada e na cultura humanas, por isso é objeto de busca incessante e parece jamais atingida. A tranquilidade parece indicar dimensão subjetiva, mas inclui intersubjetividade. Ordem parece indicar dimensão social. Como ordenar as duas dimensões na composição individual e social? Surgiu a busca político-filosófica por uma ordem baseada na chamada ética. Ética é aqui entendida como ordenamento dos costumes humanos, segundo diretivas; mas, que diretivas? E quem as norteia e como fundamentá-las?!
Os códigos que vão emergindo em diversas culturas refletem o esforço humano em busca da paz. Seria a paz algo que supera o esforço humano? Faria entrada na vivência/convivência humana como um dom dos deuses, ou vinda do alto? Seria fruto de árdua busca da sabedoria? Ou seria o silêncio que paira sobre os campos onde a guerra termina por falta de combatentes?  
Mitos ancestrais situados em culturas antigas, por exemplo na ilha de Creta, falam de uma paz primordial reinante sob a égide do patriarcado, onde se cultuava a vida e não se promovia a espada. Mas vieram “os homens do norte” com espadas, e a paz se tornou fatídica...
A reflexão sobre esse tema revela que a paz é dom antes de ser invenção; a vida só prospera no dom da paz. Por isso, a paz foi e é tarefa; tarefa sempre atual e inacabável. Quem quiser avançar no conhecimento e na vivência prática da paz, pode encontrar largos e ricos subsídios nos textos de Dom Irineu R. Guimarães; vale a pena lê-los e meditá-los. Podem fazer objeto de círculo de estudo e debate para quem quiser se tornar uma pessoa pacífica e artífice da paz.

2. Quando o Cristo ressuscitado diz aos apóstolos reunidos: “A Paz esteja convosco!”, o que Ele, de fato, está a lhes desejar?
Jesus Cristo testemunha a paz após a ressurreição. Será que os seus discípulos não estavam revoltados com o que foi feito com Jesus? Jesus se lhes apresenta como homem pacífico e testemunha a paz: “A paz esteja convosco!”. Que a paz reine do coração dos discípulos, e não a revolta, a vingança, a mágoa, etc...
Jesus Cristo não pede guerra ou vingança, mas insiste a paz: “A paz esteja convosco!”: com todos os discípulos entre si e com todos...

3. Na Fratelli Tutti (n. 258), o Papa Francisco diz: “hoje é muito difícil sustentar os critérios amadurecidos em outros séculos para falar de uma possível guerra justa”. Podemos continuar a falar em “guerra justa”?

Tema sempre atual. A questão pressupõe a presença da injustiça, que requer justiça, mesmo que seja pela guerra. Importa aprofundar e clarear o tema da justiça. O que é a justiça? O que é justo e sob que bases definir o que é justo/injusto? E quem é o justo que fará isso, e a quem? A partir de Jesus, só quem vive a paz e luta pela paz tem condições de erguer um mundo de justiça. Hoje, dados os meios e condições de aniquilamento da humanidade, quem se arriscaria dizer que sua guerra lhe dá o direito de extinguir a humanidade e a vida do planeta? Penso que dadas tais situações, é inviável falar em guerra justa!
Precisamos rever ou repensar a condição humana e sua sobrevivência. O humano surge sob a ação do verbo. A palavra profere o pensamento e exprime o coração, isto é, expõe o ser humano em sua condição de mediação pela ação/palavra e não pelo ato mortífero. O verbo é o ápice do humano no ser humanizável — lição inesquecível de Aristóteles e da tradição ocidental: “animal rationalis”. Na palavra, ou verbo, todos os humanos tornam-se pares e iguais e, assim, podem enfrentar as desigualdades, sempre renascentes na construção do mundo social.

4. Será que é possível haver paz no mundo enquanto persistem as enormes desigualdades sociais? A partilha dos bens pode favorecer a Paz?
A partilha essencial dos bens pressupõe sempre a partilha da palavra. Falar, escutar, dialogar e ponderar: palavra/escuta/ juízo/ação. Paulo VI sempre insistiu no “desenvolvimento” dos povos. João Paulo II avançou por este caminho. Isto requer relações em todos os âmbitos, mediadas pela arte do diálogo interminável.
Prepara a paz no ser, no agir, no falar e no conviver. Tarefa sempre atual, inadiável e interminável.

5.  Papa Francisco diz que “não há paz sem a cultura do cuidado”. Fala-se em “educar para a paz” e em “criar uma cultura de paz”. Como se constrói uma cultura de Paz?
Uma pesquisa revelou que as pessoas entrevistadas irrompiam em palavras, quando a questão versava sobre a violência... Mas, quando a questão era sobre a paz, o entrevistado não sabia o que falar, reinava o silêncio e o estupor. Isto é muito revelador. A paz é suposta, mas não é objeto de busca, não é objeto de conversa, de diálogo, etc.
6. Um dos autores que mais escreveu sobre a paz nos últimos tempos, é o nosso Pe. Marcelo Guimarães (Dom Irineu). Quais são as principais novidades nos seus escritos?
Creio não ser possível falar ou justificar “guerra justa”, pois alguém se suporia senhor de todas as condições da vida. Ora, isto é ridículo!
Educar para a paz— é o lado positivo da afirmação posta negativamente como “Não matar!” (conf. Quinto mandamento). Educar para a paz é mais empenhativo do que “Não mates”; requer o empenho de todo o ser em prol da vida. Promover a cultura da paz é tarefa humana inacabável; não há manuais que norteiem este imperativo. Vale a pena ler as cartas que Dom Irineu escreveu para Irene, no seu livro “Correspondência com Irene”.

7. Uma das decepções na atual invasão da Ucrânia pela Rússia foi a postura do Patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa Russa, que justificou a invasão como moralmente justa.  Qual é a importância das religiões na construção da Paz no mundo?
A questão “religião e guerra” requer um aprofundamento antropológico. O ser humano é um todo, embora possa ser descrito e compreendido em dimensões, épocas, conversões, etc. A dimensão religiosa faz parte do ser humano. É inegável que a vivência da religião suscita problemas em larga escala, como é notório. Religião e política fazem parte do ser/agir/individual/social/histórico. Deuses são invocados por um lado e por outro para justificar e vencer a guerra. A religião religa o ser humano a Deus. Mas, será que religa os seres humanos entre si, de modo pacífico? Aqui seria importante ver a história das religiões e dos seres humanos que as professam. Se não há guerra justa, não há invasão justa; há prepotência, e a questão religiosa pode tornar-se um pretexto para justificar ambições, etc.
Para quem pensar que a guerra é justificável, pense na semeadura de morte que ela provoca e no silêncio sepulcral...Quem ama a vida e cuida da vida, prepara a seara da paz, da justiça e da promoção do humano, pois o ser humano não surge pronto, maduro; surge com uma vocação, uma inspiração fontal para a vida, de acordo com o étimo grego de “anthropos”.
Respirar, inspirar, pousar em base firme, andar, abrir-se, abraçar, etc... requerem ambiência em que reine paz, solidariedade e complementaridade; viver e conviver somente são possíveis na visão mais abrangente da paz. Nesta perspectiva, tudo o que vive requer paz como condição de possibilidade do viver-conviver, isto é: cultura da paz.

8. Uma das propostas do Papa Francisco é diminuir os investimentos na fabricação de armas e aumentar os investimentos para superar a fome. Será que esta proposta encontrará eco nos governantes?
A questão da fabricação e comércio de armas, e da produção e comércio de alimentos, são geralmente compreendidas na perspectiva do domínio, e autossuficiência em caso de crise de guerra e da satisfação das necessidades primárias do povo de cada nação. O comércio é uma das grandes artes humanas para satisfazer as necessidades dos povos mediante o trabalho, pela mediação da palavra, na efetivação dos compromissos assumidos e na esperança de caminhar juntos na senda da paz. A política, no seu nobre sentido, é a arte das artes para encontrar e viabilizar tais encaminhamentos nas vias da paz, paz sempre instável e sempre renovável.

"Felizes os que promovem a Paz!"
Mateus 5,9


Autor: Pe. Zé Renato Back e Pe. Pergentino Pivatto.
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