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A frase de Edgar Morin acima citada foi usada pelo autor em recente artigo em que analisa o conflito entre Rússia e Ucrânia.(1) Tomada isoladamente, essa frase serviria para várias outras análises que, no atual momento, poder-se-ia fazer acerca da realidade social, política ou econômica de um país qualquer ou da sociedade mundial.
Faz pouco mais de dois anos que o mundo, surpreso, mergulhava nas incertezas do que viria pela frente em decorrência da irrupção da pandemia da Covid-19. E ainda permanecem dúvidas em relação a essa ocorrência, do que ficará e do que ainda poderá ocorrer em virtude das constantes mutações do vírus.
Se nos focarmos na realidade brasileira, seja na situação econômica, social ou na conjuntura política, um diagnóstico que apontasse para a “total incerteza do amanhã” também faria sentido.
Se é verdade que, se analisarmos friamente qualquer realidade e isso a qualquer momento, a ideia de incerteza sempre está presente. Ocorre, no entanto, que em determinadas situações essa incerteza parece assumir ares mais preocupantes, deixando as pessoas mais assustadas ou ansiosas.
As consequências de uma guerra sempre são imprevisíveis, e pode-se afirmar, sem medo de errar, que ela sempre faz muitas vítimas inocentes. (Obs.: no momento em que o artigo é escrito, o conflito entre Rússia e Ucrânia tinha sido deflagrado há pouco mais de três semanas, e tudo indicava que ainda estava longe de um desfecho).
Além de imprevisível, pelo caráter de uma violência mais brutal e explícita, é natural que a incerteza que parte de uma guerra assuma tons mais dramáticos, e nesse sentido acaba tendo reflexos mais imediatos e fortes sobre as pessoas, inclusive sobre aquelas que estão geograficamente afastadas do conflito.
Retornando ao cenário brasileiro, dizer que estamos diante de um quadro de incertezas por conta de não sabermos qual desfecho teremos no corrente ano em virtude das eleições é dado elementar. Essa imprevisibilidade “faz parte do jogo”, como se costuma dizer. Ocorre, todavia, que à incerteza desse “jogo” em específico somam-se as incertezas das consequências que (ainda) advirão, a médio ou longo prazo, do que foi gerado pela pandemia e, agora, do que já foi e ainda será fruto dessa guerra.
A economia brasileira já vem se arrastando, em baixa, há um bom tempo. Os índices de desemprego estão altos. Indicadores sociais apontam para o aumento da pobreza. Se as cenas de mortes causadas numa guerra são chocantes, não menos chocantes são aquelas que mostram, cotidianamente, brasileiros na sua luta diária para não morrer de fome.
E o cenário de incertezas não se embasa apenas nos eventos citados, mas também se fundamenta em inúmeras outras questões, dentre as quais o diagnóstico sobre as profundas mudanças pelas quais a sociedade passou nas últimas décadas por conta do avanço das tecnologias da comunicação.
A ideia central presente no conceito de modernidade líquida, do sociólogo Zygmunt Bauman, nunca foi tão apropriada para descrever o momento, seja no que se refere ao cenário socioeconômico, seja também em relação às demais interações sociais. O que temos hoje não se sabe se seguirá amanhã. Se um trabalhador estiver numa relação de trabalho com uma empresa hoje, ele não saberá se seguirá nela amanhã. E o que contribui para aumentar ainda mais as incertezas é o tipo de relações que são estabelecidas hoje. Extremamente instáveis, frágeis e inseguras. Alguém inicia uma relação de troca com uma organização que está situada em outro país e, de uma hora para outra, tudo se rompe. E, quase sempre, a “corda arrebenta do lado mais fraco”.
A ideia de um projeto de vida que se constrói hoje, e em cima do qual se trabalha por alguns anos com vistas a alcançar algum resultado mais adiante, tudo isso simplesmente desapareceu do horizonte. Essa é uma das ideias centrais desenvolvidas por Bauman. E isso tudo causa temor e incertezas, ainda mais agora quando se soma a isso alguns novos fatores geradores de instabilidade e incerteza: guerra, pandemia, etc.
Vivemos tempos líquidos. E, acima de tudo, tempos violentos. A violência dá às caras no seu modo mais tradicional - por meio de uma guerra -, segue se revelando em cenas de pessoas morrendo de fome e, agora, assume outros contornos, por meio dessas relações de trabalho virtualizadas que, ao se romperem, representam quase sempre um ato violento contra a parte mais fraca.
A própria política, conceituada pelos gregos como a arte do diálogo e de bem governar a cidade, parece estar longe disso. Já faz alguns anos que a intensa polarização praticamente inviabilizou o debate entre os diferentes. E uma vez que não há mais possibilidade de diálogo, resta a violência. É o que diz a conhecida frase atribuída Carl von Clausewitz: “A guerra é a continuação da política por outros meios”.
Se no caso do conflito entre Rússia e Ucrânia verificou-se o fim da capacidade de diálogo e, passo seguinte, a continuação da política por outros meios, a questão que fica no ar, e que já foi levantada por alguns analistas em relação à eleição brasileira deste ano é exatamente esta: será que não veremos um estremecer das relações e a ocorrência de episódios mais violentos?
Talvez seja uma perspectiva meio alarmista. Talvez. De todo modo, o “caldo” político gerado na sociedade brasileira por posições extremistas e intolerantes criou as condições para isso. Assim como no conflito verificado no Leste europeu, há, por vezes, a impressão de que também em território brasileiro perdemos a capacidade de discutir ideias divergentes sem partir para agressões de toda ordem. E o que mais se precisa nesse momento é isso: recuperar o sentido da política como a arte do diálogo entre os diferentes para que seja possível construir um espaço comum em que todos tenham vez, voz e uma vida digna.