A
cada ano, no início de novembro, começam as procissões até os cemitérios onde
estão sepultados nossos entes queridos. É um sinal de que os antepassados nos
importam e sua memória continua viva entre nós. Vem as lembranças das pessoas
queridas que partiram e somos levados a pensar no nosso futuro. Quanto tempo de
vida ainda nos resta neste mundo? Quais são os rastos que deixaremos na terra
com a nossa passagem? Como devemos acompanhar as pessoas em seus últimos
momentos de vida? Como enfrentar o luto? Pensando nisso, publicamos o presente
encarte.
Pe.
Roque Hammes
Pároco
da Paróquia São Sebastião Mártir
Preparar-nos para a morte
A
médica geriatra Ana Cláudia Quintana Arantes publicou um belo livro com o título
“A morte é um dia que vale a pena viver”. Uma das constatações é que a gente se
prepara para tudo na vida, menos para a coisa que é mais certa, que é a morte.
“A única coisa da existência humana que não tem opção é a morte. Para todo o
resto há opção: podemos fazer ou não, podemos querer ou não. Mas morrer ou não,
isso não existe”.
O
padre Antônio Pagola diz que, quando a velhice se aproxima, é hora de a gente
se perguntar: “Como pretendo terminar a vida?” É a oportunidade de aprofundar a
fé, desvencilhar-se da imagem de um Deus demasiadamente rigoroso e prestar
atenção no Deus de infinita misericórdia, ou seja, no Deus Pai de Bondade. Assim
como Deus nos chamou para a vida terrena, ele também nos chama para a morte
física, ou seja, para a vida eterna: “Vinde benditos de meu Pai” (Mt 25,34).
Para as pessoas de fé, a morte é um chamado para a vida eterna.
A
preparação para a morte passa por um profundo exame de consciência, quando a
pessoa olha para o seu passado e rende graças a Deus por tudo aquilo que dele
recebeu ao longo dos anos. Junto a isso deve entrar o perdão: Pedir perdão a
Deus e às pessoas a quem ofendemos, oferecer o nosso perdão aos que nos
ofenderam e perdoar a nós mesmos por algum passo que damos em falso ao longo da
vida. Perdoar assim como Deus perdoa.
O
assunto da morte deve ser tratado com naturalidade na família. É lá que devemos
falar sobre os nossos últimos desejos, sobre a doação ou não de órgãos e se
queremos ser sepultados ou cremados. Também é lá que devemos expressar o nosso desejo
em conhecer a real situação da nossa saúde e falar sobre o destino dos bens que
temos.
Presença na hora da morte
Muitas
pessoas hoje, infelizmente, morrem isoladas nas UTIs. O ideal é que isso não
fosse assim, e que a pessoa pudesse sentir a presença dos entes queridos na
hora em que faz a travessia. Diz Ana Cláudia: “A melhor coisa que posso fazer
por alguém na hora da morte é estar presente. Presente ao lado dessa pessoa,
diante dela, por ela”. Não mentir para ela e não querer lhe alimentar falsas
esperanças, dizendo que está tudo bem, “porque ela sabe que não está tudo bem”.
Também não usar discursos do tipo: “Você foi sempre uma pessoa tão boa e não
merecia este sofrimento todo”. Uma presença silenciosa faz muito bem ao
paciente.
A
psicóloga Maria Julia Kovács, em aula no ICL no dia 16/03/21, dizia que,
“diante da morte, é importante falar sobre os medos, cuidar para que a pessoa
tenha uma morte digna. A pandemia nos privou, muitas vezes, dos cuidados
paliativos e do carinho final com a pessoa. Pessoas que, na UTI, foram privadas
da palavra de carinho”.
Padre
Júlio Lancelotti (Aula ICL 13/04/21) diz que “quando uma pessoa está em estado
de coma, não sabemos o que ela ouve. Por isso, é importante que, nestas horas,
a gente diga para a pessoa que ela é amada, é querida... Fazer o melhor que se
pode, por amor. Perceber que a pessoa está apagando e continuar a dizer: “Eu
amo você”. “Deus está contigo e te ama”. “Nós te agradecemos por aquilo que
você fez e foi para nós”.
A
psicóloga Roseli Kühnrich diz que “alguns dos cuidados ao moribundo incluem
segurar sua mão ou tocar seu rosto, porque o toque ativa o registro de memórias
sensoriais. Pedir ou conceder perdão, se for preciso, ajuda a pessoa a morrer
de forma tranquila. A família pode se despedir com afeto, agradecendo a pessoa
e a Deus pela convivência humana. Permitir que a pessoa também possa expressar
a sua despedida. E depois dizer adeus”.
Pessoalmente,
tive a grata experiência de estar junto ao meu pai quando, em 1996, ele morreu
vítima de um câncer de pulmão. No final da tarde daquele 6 de junho, o médico
passou no quarto e disse ao meu irmão que o pai não haveria de passar a noite.
Imediatamente ele avisou os familiares e, na hora da morte, estávamos reunidos
em 10 irmãos, mais a mãe, os sobrinhos e cunhados, todos de mãos dadas, rezando
e ajudando o pai a fazer a travessia enquanto lhe agradecíamos por aquilo que
ele havia feito por nós e que nos havia ensinado.
Uma
das coisas mais importantes para as pessoas que estão presentes na hora da
morte de um ente querido é dar tranquilidade à pessoa, permitindo-lhe fazer a
passagem. Nunca devemos querer segurá-la entre nós, mas procurar um bom
ambiente para que ela possa “entregar a sua vida nas mãos do Pai”.
Rituais de Despedida
Conforme
a psicóloga Melissa Couto (Perpétuo, p. 133) “a existência dos rituais de
despedida, por meio dos funerais, sepultamentos e homenagens, são tão antigos
quanto a própria humanidade”. Eles variam de acordo com a cultura, a tradição
religiosa e a condição social da pessoa. São repletos de símbolos, que mostram
aquilo que não conseguimos expressar com palavras.
Sendo
realizados, em princípio, para quem morreu, os rituais também são vitais para
as pessoas que permanecem. Neste sentido eles envolvem três aspectos (Perpétuo,
p. 134):
1º)
Fazem-nos admitir a perda e entrar no processo de luto;
2º)
Simbolizam o que os familiares incorporaram da pessoa falecida;
3º)
Simbolizam os momentos de mudança em nossa vida.
Na
cultura local, os rituais geralmente incluem o velório, as celebrações de
encomendação, o funeral e a missa ou culto de sétimo dia.
O
velório é o momento para “resgatar memórias, relembrar histórias, reviver
lembranças e validar os sentimentos pela pessoa de quem estamos nos despedindo.
É o tempo concreto para, de forma pública, demonstrarmos nosso amor e respeito
por aquele que perdemos, expressar nossa dor pela perda” e socializar os
sentimentos com as pessoas que nos são mais próximas. Neste momento não adianta querer falar muito.
A pessoa não está em condições de raciocinar. O que importa, é trabalhar com
atitudes de sentimentos. Dar um abraço diz mais do que muitas palavras. Ficar
em silêncio com a pessoa, nesta hora, é muito mais importante do que dizer muitas
belas palavras.
As
celebrações de encomendação para as pessoas de fé, além de serem o momento para
homenagear o falecido, são a expressão da fé de que o ente querido não está
morto, mas continua vivo junto de Deus. Simbolicamente, estas celebrações ajudam
a pessoa falecida a alcançar o paraíso, mostrando a Deus que ela é digna de
alcançar a felicidade eterna. A respeito disso, temos uma bela afirmação de
Pascal: “Precisamos apostar: se você aposta que não existe vida além da morte,
você, ao morrer, não ganha nada. Se você aposta que existe vida eterna, você
tem tudo a ganhar com a morte. Se existe, você estava certo. Se não existe,
você nunca saberá”. São Paulo diz que “com Cristo a morte foi superada pela
vida”.
O
rito do funeral (sepultamento) inclui a benção da sepultura onde deixamos os
restos mortais do ente querido. A partir de agora, este lugar é sagrado para a
família, sendo que, em anos passados, se chamava o cemitério de “campo santo”. Inclusive
para a pessoa que é cremada, a Igreja tem uma benção para a deposição da urna
com as cinzas.
Nos
dias subsequentes ao sepultamento vamos curtindo o luto que, simbolicamente,
começa a diminuir quando rezamos a missa de sétimo dia ou o culto em memória do
falecido. Outras religiões tem outras formas de marcar o luto.
Sepultar ou Cremar?
Desde
os tempos mais remotos, há registros de pessoas sepultadas, pessoas cremadas e
pessoas entregues como alimento aos animais.
Assim,
os chineses, seguidores das tradições religiosas budistas, adotaram a cremação,
vendo no fogo “um símbolo de purificação e de regeneração que prepara o corpo
para a próxima encarnação”. A mesma prática era adotada pelos escandinavos, que
acreditavam que o fogo libertaria o espírito de seu invólucro carnal e impediria
ao morto causar algum mal aos vivos.
Os
egípcios embalsamavam o corpo do falecido e o colocavam em urnas junto com os
objetos de sua preferência. Indícios de práticas parecidas encontramos nas
primitivas culturas indígenas da América.
Já
na cultura judaica cristã se adotou a prática do sepultamento, sendo que a
cremação não era permitida pela Igreja Católica até 1963, quando, “por meio
do papa Paulo VI, o Vaticano reconheceu a cremação como um ritual válido de
despedida”. A partir de então, “a Igreja entende que a cremação, em muitas
situações, se faz necessária, principalmente em lugares de grande população,
onde não há espaço suficiente para o sepultamento dos corpos”. Orienta, porém, os
fiéis, a que as cinzas não sejam espalhadas na natureza ou mantidas em
casa, mas que sejam guardadas num lugar sagrado, que podem ser os cemitérios ou
espaços próprios criados para este fim.
De acordo
com Dom Leomar Brustolin, é importante ter um lugar onde se possa reverenciar e
rezar em memória daqueles que caminharam entre os vivos e agora vivem no céu,
na morada do Eterno Pai. Ir ao local onde se encontram os restos mortais dos
entes queridos e poder acender uma vela ou depositar uma flor, é
importante para não afastar a memória dos falecidos da recordação dos
parentes e da comunidade cristã.
Não podemos
esquecer que, infelizmente, a cremação também é adotada para apagar a memória
de importantes lideranças de oposição aos governos ou a gangues de tráfico de
drogas, evitando, desta forma, a peregrinação aos túmulos destas pessoas e
acelerando o processo de esquecimento daquela liderança. Fazer desaparecer o
corpo de um líder popular é prática comum de regimes autoritários.
A importância do luto
“Se
não tivesse amor, não teria dor”. Para Colin Parkes (Perpétuo, p. 6), “amor e
luto, vínculo e perda são duas faces da mesma moeda; não se pode ter uma sem
ter a outra. O luto é o custo do amor e a única maneira de evitar a dor do luto
é evitar o amor”.
O
luto não nos deve imobilizar, mas sim, fazer avançar e, quem sabe, suprir a
lacuna deixada pela pessoa que partiu.
Ana
Cláudia Arantes (ICL 09/03/21), afirma que “o processo de luto é diferente de
uma pessoa para a outra. A pessoa que consegue viver antecipadamente o luto
através do acompanhamento do moribundo em seus últimos momentos da vida e
aceita este momento como algo normal, consegue absorver melhor. As pessoas que
não tem esta possibilidade por causa da morte repentina ou pelo isolamento na
UTI, ficarão com o abismo de um espaço que não teve como ser preenchido. Aí se
faz a reconstrução através das lembranças de amor que a pessoa deixou”.
Quanto
mais amada é a pessoa, mais dolorida se torna a sua perda, porque a dor que se
sente é proporcional ao amor.
O
luto, porém, não pode ser eterno. Se a pessoa se reconstrói ela faz a vontade de
quem se foi, porque ninguém que partiu desejaria que a gente ficasse chorando por
ele pelo resto da vida. A vida é fluxo,
é rio. Alguém que ontem consolou, hoje consola”.
Eduardo
Moreira (ICL) propõe que se passe do luto para a luta: “O que nos deve unir é a
compaixão. E aí não tem partido político, time de futebol, classe social. O que
nos mantém vivos como humanidade é a capacidade que temos de cuidar uns dos
outros. Ninguém de nós chegou sozinho até aqui. Só chegamos até aqui porque
somos pessoas compassivas. A compaixão nos fortifica para fazermos a travessia
do luto para a luta”.
Simão
Pedro (ICL 13/04/21) diz que “o choro da tristeza abre espaço para se ir ao
encontro dos outros e compartilhar os momentos da vida com eles. Ser caridoso,
praticar o bem, ajudar os necessitados é a forma que os espiritas encontram
para viver o luto. A tristeza pelo ente querido que partiu, permanece, mas
temos a alegria de poder ajudar os outros. O tempo passará, independente de
chorarmos parados ou chorarmos servindo. Servir, apesar da dor”.
Frei
José Alamiro (ICL 20/04/21) diz que “saudade é o amor que fica. E onde existe
amor, surge a vontade de viver. E o amor é Deus. ‘Deus é amor e quem permanece em
Deus permanece no amor’. A pessoa levada pela parteira “irmã morte” para a vida
eterna, vive na plenitude do amor”.
Na
mesma linha, a psicóloga Roseli Künrich (Perpétuo, 155) diz que “entender o
morrer como uma volta para casa, no linguajar cristão, é de certa maneira
reencontrar o Rosto de Deus, eternamente. O desamparo se dilui na presença do
Rosto, da Face da ternura, que, tendo permanecido ao nosso lado, nos tomará
pela mão para a travessia”.
A
Mãe Baiana de Oyá (ICL 27/04/21) diz que, “no candomblé, sentimos a dor, mas
nos consolamos através do ritual da volta da pessoa para a sua casa e que os
familiares sigam o seu caminho, sabendo que um dia também vão voltar. “Estou
voltando para casa. O que eu tinha a fazer aqui já fiz. Agora volto para casa”.
Há um só Deus que trata a todos da mesma forma, e todos voltaremos para a mesma
casa. Por isso precisamos deixar de lado o ódio, as divisões e nos compreender
e nos aceitar, sem importar a cor, a religião. Quando alguém morre, a gente
chora, mas aceita, porque vai chegar a vez de todos nós. Procuramos amenizar a
dor da separação com a nossa presença, oferecendo o ombro amigo, estando
juntos, sendo solidários”.
A
Monja Coen Roshi (ICL 04/05/21) afirma que “tudo o que geramos na vida produz
renascimentos. Aquele ser humano que morreu não está mais fisicamente presente,
mas tudo aquilo que esta pessoa deixou está em mim. Por isso, não posso dizer
que “perdi alguém”, mas sim, “vivi com alguém”. E cita Buda que, antes de
morrer, pediu: “Não se lamentem. Tudo o que começa, inevitavelmente termina.
Não foi o meu corpo que vocês admiraram, mas meu ensinamento, e este fica. Vão
e façam aquilo que eu lhes ensinei”. E lembrando a sua mãe que era do
Apostolado da Oração, ela diz que guarda com carinho a afirmação de que as
pessoas falecidas se tornam estrelinhas. “É bonito eu poder dizer que a minha
mãe é uma estrelinha”.
Situações
muito difíceis se referem ao luto em casos de suicídios, feminicídios,
assassinatos, acidentes de trânsito, afogamentos, tragédias (Boite Kiss e
Brumadinho). Nestes casos, não houve preparo anterior, muitas vezes são pessoas
jovens e existe o complicador da pessoa que provocou a morte: “Por que ela fez
isso? O que eu poderia ter feito para evitar? O que vai acontecer com os
culpados?”.
Que
Deus acolha em seu Reino os nossos entes queridos que partiram e que tenham o
eterno descanso junto do Pai.
BIBLIOGRAFIA:
ARANTES, Ana Cláudia Quintana. A morte é um
dia que vale a pena viver. Casa da Palavra.
BRUSTOLIN, Dom Leomar: A Igreja permite a cremação?
In: Site da CNBB, 08/07/22.
Instituto do Conhecimento Liberta: Do luto
para a luta. Curso realizado nos a 02/03 a 04/05/2021.
PAGOLA, José Antônio: É bom crer em Jesus.
Ed. Vozes
PERPÉTUO, Marcelo (Org): Luto: tempo de
chorar a dor e ressignificar a vida. Ed. Sinodal.