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A discussão que proponho neste breve espaço, nos coloca no epicentro de uma contradição revelada em nossos dias, a saber, a tese sustentada por Jesus Cristo e depois por diversos pensadores, de que Deus é amor. Segundo Gabriel Marcel, a experiência essencial de Deus que o cristão pode fazer, é a experiência do amor. Esta experiência está sendo colocada à prova em nossos dias. Em 1 João 4,8 lê-se: “Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é Amor”. Talvez essa seja a forma mais clara de escrita contida nas Sagradas Escrituras, porém em outras passagens e especialmente no Novo Testamento, são inúmeros os indicativos que Cristo faz nesse sentido. Aliás, todo o Novo Testamento é um convite para ações em prol da promoção do outro, da dignidade humana, da vida. Então, como compreender que cristãos contemporaneamente estão se comprometendo com propostas que não têm em seu centro a promoção da vida? E mais, como entender cristãos engajados em movimentos da Igreja que apoiam projetos de governo que difundem o ódio e a segregação, a discórdia e a desunião entre os cidadãos?
Há muito tempo já venho me ocupando com a questão de como se forma nossa subjetividade. Em outras palavras, como compreender que penso como e no que penso, vivo como vivo e sou quem eu sou, ou acredito ser? Estes questionamentos e outros mais sobre as raízes mais profundas do meu eu, remetem aos porões da nossa existência, que, não raro, acreditamos estão trancados e desabitados. Poucos são os que têm a coragem de adentrar neste espaço em busca do sentido mais profundo e essencial do seu ser. Evidentemente que aí se encontram questões que nos inquietam, por vezes podem machucar ou mesmo colocar em dúvida nossa autoimagem e conceitos que construímos sobre nós mesmos. Isso tudo nos remete à tradição dentro da qual nossa subjetividade se constituiu.
A tradição não é um lugar que eu acesso diretamente mediante contemplação ou alguma atividade específica que envolva a psicologia ou psicanálise. Ela é muito mais do que conseguimos abarcar com nossa capacidade de compreensão. Sempre chegamos insuficientes, enquanto parte, ao lugar ocupado pela tradição, num todo de sentido. Ela é muito maior do que a minha capacidade de compreensão, remetendo a um todo dentro do qual a minha subjetividade se constituiu. Antes mesmo de nascermos, a tradição já está aí, impulsionando sujeitos e visões de mundo que irão dar a cor da existência. O fato de nascermos dentro de uma tradição que nos ultrapassa de antemão, não significa que estejamos enclausurados nela. Muito antes, significa que é a partir dela que se forma o nosso horizonte de compreensão do mundo. E é justamente este ponto que penso devemos discutir para entendermos, enquanto cristãos, as contradições do nosso tempo e encontrarmos algumas pistas para responder, mesmo que precariamente, à pergunta: como é possível cristãos defenderem um projeto de morte?
Então, precisamos entrar a fundo na tradição cristã para entendermos o contexto de um cristianismo contraditório na contemporaneidade. Precisamos ressignificar o conceito AMOR, à luz da essência das primeiras comunidades cristãs. Isso também nos levará à necessidade de revermos o significado de “comum-unidade”. O que temos em comum, enquanto cristãos? Para responder a esse questionamento, urge entrarmos a fundo no contexto político, ideológico, econômico e social. Não se trata de limitar-se a discutir sobre os partidos políticos, mas sistemas políticos, sendo o maior e mais importante o liberalismo. O espírito liberal, que não tem a ver com a promoção da liberdade e democracia, mas com a promoção do individualismo em todas as esferas, precisa ser estudado e discutido pelos cristãos. O cristianismo contemporâneo está profundamente afetado pelo espírito liberal burguês. A ideia de uma “comum-unidade” em torno do amor, está enfraquecida.
O mundo enquanto lugar de luta de todos contra todos, onde o homem é lobo do próprio homem, num ambiente hostil, onde só os mais fortes sobreviverão, não é o mundo idealizado por Cristo. Este espírito liberal que promove a discórdia e o atrito entre as pessoas, mediante a disputa e fortalecimento dos mais fortes, não condiz com o espírito das primeiras comunidades. Em At. 2,42 lê-se: “Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações”. Precisamos falar seriamente sobre isso, pois parece que em grande parte manteve-se apenas o final desta frase, permanecendo a assiduidade às orações e perdendo a proximidade com os “irmãos”, que exige a “comum-união” fraterna e a fração do pão, além de compreender quais eram os ensinamentos dos apóstolos. Não há mais espaço aqui para aprofundar a discussão, deixo as palavras cantadas por Leigão Urbana, que inspirado na Sagrada Escritura compôs a música Monte Castelo, que começa assim: “Ainda que eu falasse a língua dos homens / E falasse a língua dos anjos / Sem amor eu nada seria. / É só o amor, é só o amor / Que conhece o que é verdade / O amor é bom, não quer o mal”. (...)