Créditos foto: Pe. Roque Hammes
O nosso coração está em Deus!
“Diga-me, se alguém te desse um fragmento de ouro, não terias cuidado, fazendo bem em não perder algum pedaço ou causar-lhe dano? Não estarei portanto muito mais atento para não perder nada daquilo que é mais precioso que o ouro e as pedras preciosas?”. Por que São Cirilo de Jerusalém provoca esta reflexão?
Todo o material já disponibilizado neste ano sobre Eucaristia (Texto base, Grupos de Jesus, Entrevistas, Cursos, Artigos etc) mostram que a Eucaristia é este grande tesouro que ainda precisamos desvendar, compreender, celebrar, vivenciar.
Nesta edição da Revista Integração, Pe. Carlos Gustavo Haas, presbítero da Arquidiocese de Porto Alegre há 28 anos, atualmente pároco da Paróquia N. Sra. do Perpétuo Socorro (Porto Alegre), professor de liturgia e coordenador do Curso de Teologia da PUCRS, oferece uma belíssima entrevista. Imperdível!
Pe. Zé Renato
1. A celebração litúrgica que os católicos mais participam é, sem dúvida alguma, a Missa. Mas Liturgia e Missa são sinônimos? Liturgia é Missa ou Missa é Liturgia? São duas coisas diferentes?
Acredito que esta é uma questão muito importante de ser refletida, antes de entrarmos na reflexão propriamente dita, sobre a celebração eucarística. Por Liturgia, nós entendemos não apenas a missa ou os sacramentos, mas sim a celebração de todo o projeto do amor de Deus para com a humanidade. Falar de liturgia é falar de um Deus Pai, Criador, que realiza a liturgia da criação (sim, realiza, pois a palavra “urgia” em grego significa “ação, exercício, obra”).
A primeira liturgia que Deus realizou, e fez em favor da humanidade, foi a criação. Mas a maior liturgia que Deus Pai poderia ter feito foi ter enviado seu Filho Jesus Cristo. Que obra estupenda! E Jesus Cristo também realizou uma grande liturgia pela humanidade: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Sim, a liturgia de Jesus foi ter entregue a sua vida pela nossa salvação. E não menos importante é a liturgia do Espírito Santo que santifica toda a obra da criação, torna-nos participantes da obra da redenção.
2. E o que seria então a missa e sua relação com a Liturgia?
A Missa é a celebração memorial do mistério central da liturgia que é a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Os outros sacramentos celebram outras dimensões do mistério da liturgia, por isso são celebrados em circunstâncias especificas (por exemplo, batismo – nascimento; unção dos enfermos – doença; matrimônio – casamento…).
3. Parece que o Papa Francisco fez uma homilia que fala sobre isto, não é?
Sim, vou transcrever uma pequena parte desta belíssima homilia, proferida em fevereiro de 2014: “O Senhor fala ao seu povo de muitas formas: através dos profetas, dos sacerdotes, da Sagrada Escritura e também pela celebração litúrgica. Ela não é um ato social, não é uma reunião dos fiéis para rezar juntos. É outra coisa. Na liturgia, Deus está presente, mas é uma presença mais próxima. Na missa, de fato, a presença do Senhor é real, verdadeiramente real.
Quando celebramos a missa, não fazemos uma representação da Última Ceia. É outra coisa: é precisamente a Última Ceia. É precisamente viver outra vez a Paixão e a morte redentora do Senhor. É uma teofania: o Senhor se faz presente no altar para ser oferecido ao Pai pela salvação do mundo.”
4. Será que as pessoas percebem toda esta riqueza de uma celebração litúrgica, especialmente da missa?
Não tenho condições de julgar, mas a impressão que tenho é que realmente, muitas vezes as pessoas estão desconectadas do que está acontecendo. Claro, jamais intencionalmente ou por culpa própria, mas porque lhes faltou uma formação mais profunda sobre o sentido da missa. O próprio Papa Francisco, na homilia que citei acima, observa: “O presépio e a via-sacra são representações do Senhor. Mas a missa é uma comemoração real, ou seja, uma teofania: Deus se aproxima e está conosco, e nós participamos do mistério da Redenção. Porém, lamentavelmente, muitas vezes, na missa, olhamos para o relógio, contamos os minutos: não é a atitude própria que a liturgia nos pede.
A liturgia é tempo de Deus e espaço de Deus, nós temos que entrar ali, no tempo de Deus, no espaço de Deus, e não ficar olhando o relógio. A liturgia é, precisamente, entrar no mistério de Deus, deixar-se levar ao mistério e estar imerso no mistério. Nós nos reunimos para entrar no mistério: esta é a liturgia. É o tempo de Deus, é o espaço de Deus, é a nuvem de Deus que envolve todos nós. Celebrar a liturgia é estar disponível para entrar no mistério de Deus, no seu espaço, no seu tempo e confiar-se a este mistério. Na celebração, nós entramos no mistério de Deus: somente Ele é Uno, Ele é a glória, Ele é o poder, Ele é tudo. Peçamos esta graça: que nosso Senhor nos ensine a entrar no mistério de Deus.”
5. De tantos aspectos e dimensões da celebração eucarística, o que você poderia destacar?
Sim, não temos condições de falar sobre tudo. Comecemos por uma visão geral da estrutura da celebração: a assembleia reúne-se para celebrar (ritos iniciais), escuta e responde à Palavra (liturgia da Palavra), apresenta seus dons, louva e dá graças, parte e reparte e Pão e o Vinho (liturgia eucarística) e, fortalecidos e alimentados, todos partem em missão (ritos finais).
É fundamental que, para poderem melhor participar do mistério, todos os participantes reconheçam esta estrutura da celebração. Para muitos ainda, infelizmente, a missa torna-se uma coisa “chata”, sem começo nem fim, justamente por não saberem que toda a celebração está estruturada seguindo uma lógica que permite às pessoas adentrarem no mistério.
Lembremos o episódio dos discípulos de Emaús (cf. Lucas 24, 13-35): os dois discípulos caminham de Jerusalém para Emaús (ritos iniciais). No caminho aparece Jesus que lhes explica as Escrituras (liturgia da Palavra). Jesus é convidado para permanecer com eles em casa e, na hora da ceia, ao partir o pão, seus olhos se abrem e reconhecem o Senhor ressuscitado (liturgia eucarística). Os dois partem imediatamente para Jerusalém e testemunham: “Ele está vivo!” (Ritos finais).
6. Muitas pessoas pedem “intenções de missa” ou então participam apenas quando é “missa de 7º. Dia”, “missa de um ano de falecimento”, “missa de formatura” e por aí vai. O que dizer sobre isso?
A resposta está nas próprias orações da missa. Tomemos um exemplo, encontrado na Prece Eucarística, na parte denominada “epíclese de comunhão”: “E nós vos suplicamos que, participando do Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só corpo”; - “Concedei que, alimentando-nos com o Corpo e Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo, um só corpo e um só espírito”; - “E quando recebermos Pão e Vinho, o Corpo e Sangue dele oferecidos, o Espírito nos uma num só corpo, para sermos um só povo em seu amor”.
Este pedido nós o fazemos ao Pai, dentro da Prece Eucarística que começa com o diálogo inicial, dá graças ao Pai por tudo o que Ele fez por nós ao longo da história da salvação, em Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo. Fazendo memória destas ações de Deus, pedimos que ele continue agindo na história, enviando o Espírito Santo para que transforme o pão e o vinho em Corpo e Sangue de Cristo e que o mesmo Espírito transforme a nós, que vamos comungá-lo, no corpo eclesial de Cristo. A finalidade da Eucaristia é construir o corpo eclesial de Cristo que somos nós, a Igreja, e não apenas rezar por algumas intenções particulares. Estas “intenções” devem ser inseridas dentro do grande mistério que celebramos e não se tornarem a parte mais importante da missa.
7. Quer dizer que a Missa não é só para consagrar a hóstia mas para que nós também sejamos transformados em Corpo de Cristo?
Não consagramos o pão e o vinho para termos hóstias no sacrário. Este deveria existir apenas para guardar o Pão consagrado para que os doentes e os impossibilitados de participar da Missa, não fiquem privados da comunhão ou para guardar o Pão consagrado que, eventualmente, sobra e que, portanto, deve ser conservado com todo o respeito para a próxima celebração.
Na Prece Eucarística, pedimos a dupla ação do Espírito Santo para a transformação do pão e do vinho e principalmente para a nossa transformação, através da comunhão, no corpo de Cristo. “A Eucaristia nos faz Igreja, comunidade de amor...”, cantamos.
A Missa não é para “produzir” a presença real de Cristo no pão e no vinho. Não é uma ação mágica. A Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium fala das diversas presenças de Cristo na Liturgia: nos sacramentos, na Eucaristia, especialmente; nos ministros; na Palavra; na assembleia reunida. A presença eucarística, portanto, não anula, antes, plenifica as demais presenças.
8. Mas não é a consagração o momento mais importante da missa?
Sim e não, pois toda a celebração é importante. O núcleo da celebração é a Prece Eucarística, mas ela não acontece desvinculada da Liturgia da Palavra. O Cristo que nos alimenta é o MESMO Cristo que nos fala no Evangelho (por isso o pedido que o canto de comunhão seja escolhido a partir do Evangelho proclamado). Lembremos ainda que a Prece Eucarística é precedida pela Preparação das Oferendas e concluída com o Rito da Comunhão. Os Ritos Iniciais da missa também são importantes, porque os preparam para estas duas mesas. E assim também os Ritos Finais, pois nos remetem para a vida: “Ide!” .
A finalidade da Eucaristia é a nossa participação no Mistério Pascal de Cristo através do banquete eucarístico, banquete sacrifical, memória do sacrifício de Cristo na cruz. A oração após a comunhão do 5o Domingo do Tempo Comum reza: “Ó Deus, vós quisestes que participássemos do mesmo pão e do mesmo cálice; fazei-nos viver de tal modo unidos a Cristo, que tenhamos a alegria de produzir muitos frutos para a salvação do mundo”.
9. Resumindo, qual a razão pela qual participamos da Missa?
Para nos reunimos em assembleia, nos alimentarmos com o Pão da Palavra e do Corpo e Sangue de Cristo, louvarmos, agradecermos, suplicarmos e pedirmos perdão, para formarmos o Corpo de Cristo, a Igreja, comunidade que produz frutos para a salvação do mundo. Por isso que proclamamos já no início da celebração: “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo!” Por isso dizemos: “Ele está no meio de nós! (...) O nosso coração está em Deus! (...) O amor de Cristo nos uniu!” Já observaram como é sugestiva a última aclamação antes de retornar para casa? “Graças a Deus!”
10. Para concluir, uma dúvida: a gente deve receber a comunhão na mão ou na boca?
Podemos receber a comunhão tanto na boca quanto na mão. Mas vale lembrar que a forma mais antiga de receber a comunhão é recebe-la com toda devoção e carinho na mão (o ideal seria ainda fazer a imersão da hóstia no cálice com o Sangue de Cristo). Temos muitos testemunhos dos primeiros séculos que nos indicam que a hóstia era dada na mão do comungante. Também os fiéis bebiam do Cálice. Vejamos esta linda catequese de São Cirilo de Jerusalém (+- 386):
“Quando vieres para receber a comunhão, não venha com as palmas das mãos abertas, nem com os dedos separados, mas estende a mão esquerda e coloca sob ela a mão direita, como que fazendo um trono que deve receber o rei de tua vida. Recebe o Corpo de Cristo na cavidade da tua mão e responde: ‘amém’. Depois de haver santificado os teus olhos vendo o santo Corpo, come-o cuidando para que nada se perca. Se perdes um pouco, deves considerar tal perda como uma amputação de um de teus membros. Diga-me, se alguém te desse um fragmento de ouro, não terias cuidado, fazendo bem em não perder algum pedaço ou causar-lhe dano? Não estarei portanto muito mais atento para não perder nada daquilo que é mais precioso que o ouro e as pedras preciosas?”
Ainda segundo Cirilo, para beber o vinho, o crente deveria também fazer, primeiro, uma inclinação, como ato de veneração e adoração. É importante que digamos o “amém”, pois é uma afirmação de fé na presença do Senhor.
Autor: Pe. Zé Renato e Pe. Carlos Gustavo Haas.Fonte: Revista Integração Diocesana, Ed. 447.